domingo, 22 de junho de 2014

D Bolota e o segredo da árvore encantada: puro encantamento

D Bolota e o Segredo da Árvore Encantada (direção de Catarina Accioly e William Ferreira, sobre texto de Ronaldo Guedes – Ronaldo D’Oxum) traz diversos segredos que a maioria dos observadores críticos parece não ver ou se recusar a ver: a linguagem que sugere, mas não impõe. Ela permite que cada um a receba e se deixe transformar (ou não) conforme suas experiências e suas reflexões particulares.
O texto trata de assunto religioso. E o trata sem praticar proselitismo como o faz a maioria de religiosos e líderes. Trata do tema da mesma forma que as crianças tratam as coisas, sem moral, sem maniqueísmo, apenas como observadores ávidos por experiências. E, belíssimo, trata de assunto espiritual do nosso romançal, da nossa cultura ancestral, das nossas origens.
Comparando com outro trabalho que está em cartaz na cidade, da dupla Neio e Nanda (que não vi e não me interesso muito em ver) parece que as nossas tradições são coisa de menos importância ou que o produto estrangeiro, por pior que seja, é sempre melhor do que o nosso.
O tema de Abalabu é de uma beleza cristalina, singelamente descrito e singelo aqui,quero registrar como essencial, puro, sutil. O vício de intelectualizar as coisas simples na tentativa de enfeitá-las para lhes emprestar maior significância é coisa de humanos. Só os anjos e os deuses conseguem ser profundos e diretos, exatamente porque não prescindem da pureza sem artifícios.
O cenário, uma aparente desordem de cordas em cores, não se propõe a repetir a forma dos objetos, ele sugere. E faz muito tempo que os impressionistas franceses demonstraram que quem constrói a forma é a retina do observador. Que bom que essa aparente desordem de cordas me permitiu “ver” uma floresta e uma enorme árvore, exigindo que a minha retina e o meu cérebro construíssem, de maneira única e particular, a “minha floresta e a minha árvore”. Deixei de ser um observador passivo diante de um cartão postal para ter o prazer de ser o criador da paisagem onde o texto se desenrolava. E tenho a mais nítida certeza que o mesmo aconteceu com as crianças. As crianças livres não precisam de uma árvore realista para enxergar uma árvore... embora a maioria dos papais e dos críticos as repreendam e tentam orientá-las para que desenhem uma árvore como “é uma árvore”! Atenção, papais e críticos, há quase 200 anos Gauguin afirmou que “a árvore só é verde porque o primeiro pintor a viu verde” e se permitiu pintar uma vaca vermelha em uma de suas paisagens...
Miriam Virna é uma das poucas atrizes brasilienses que têm a personagem no corpo inteiro. (faz-me lembrar Deborah Bloch). Cada ictus, cada esgar, cada terminação corporal parece sair de um centro da personagem e não só do cérebro da atriz. A fala dita pela boca e o sentido completado pelo corpo dão um prazer enorme ao espectador. Não há um só movimento, por mais mínimo que seja, que não pertença à personagem e ao texto. E o melhor, mesmo as caratonhas não caem, jamais, no ridículo do teatro infantil comum da cidade: cuja fala é sempre tonitroante como se criança fosse um ser surdo; nem na entonação infantilóide como se debilidade metal e infância fossem coisas inseparáveis.
O figurino das 4 crianças é encantador! Quem teve filhos, ou sobrinhos ou dedicou alguns minutos que fossem para observar – sem crítica – uma criança, sabe que um pedaço de pano vira uma capa de super-herói, a mais perfeita e eficiente; uma bicicleta é uma nave intergalática e um tapete amarelo sempre foi um rio dourado!
A utilização de diversas mídias como se crianças as tivessem utilizado sem a pretensão do acerto e da correção típicas dos técnicos adultos é absolutamente envolvente. Você, adulto, fica perdido entre os limites de cada uma, exatamente como as crianças que não necessitam explicações lógicas.
E ainda há muita coisa agradável a ser dita, mas textos longos não são lidos (!!!).

Se você já se esqueceu de como é ser criança, não vá assistir a essa peça. Ela não vai lhe dizer nada e você vai se dar ares e empostações e vai falar mal. Mas se ainda se lembra, sente-se junto às crianças da plateia e se deixe tomar pela pureza cristalina, o não juízo. Você vai sair de lá encantado e comovido. Vai lamentar talvez, um pouco, ter crescido tanto.