sexta-feira, 27 de novembro de 2009

15 anos depois. Brasília concreta? Abstrata? Ou inerte?


No magnífico texto “Brasília Concreta e Abstrata”, Clarice Lispector registrou o seu estupor diante da magnificência de Brasília, logo após a inauguração. A paralisia mental diante da magnitude da beleza, da ousadia, da loucura e da in-sensatez de alguns visionários e da sua obra recém exposta.
O verdadeiro artista carece, em sua essência original, de entregar-se à estuporação e ao conflito, vez em quando. É, a partir da imobilização, que o verdadeiro artista entra em fobia pelo status quo e rompe a membrana do usual, do ordinário, do previsível, do velho e se entrega à onda nova, ao precipício do incomum e é capaz de gestar a “criança da promessa”.
Clarice deixou um legado específico para Brasília: que a sua gente jamais saísse do estado de prontidão para o estupor. O mundo ainda hoje, 50 anos depois de criada, perde a capacidade de controlar-se e evitar esse estupor diante de Brasília. Dia após dia vêm pessoas aqui, pela primeira ou mais vezes, que quedam mudas. Estupefatas. Absortas nessa imensidão povoada.
Pena que só os estrangeiros e poucos nativos ainda se dão ao desfrute dessa incompreensão. Dessa absorção pela beleza. Pela incredulidade que Brasília provoca.
Os nativos e, principalmente os nativos jovens passaram a olhar outros interesses, citadinos, materiais e, principalmente daqueles tão corriqueiros... repetir a fórmula de sucesso dos pais, concursos públicos para manutenção da existência e uma, digamos, facilidade mais acentuada de acessos aos dinheiros públicos, baratos...
Saudosismos à parte, houve um tempo que isso também causava estupor no jovem nativo. Plebe Rude, Capital Inicial, Legião Urbana que o digam. Belos representantes da espécie que se rebela para quebrar estado de estupor e instituir nova onda. Aquele estado tão necessário ao artista!
Brasília gerava e paria movimentos rebeldes nas artes, educação, política.
O Grupo Pitu (teatro) endiabrado, endiabrava as platéias. Movimento Cabeças perguntava, apontava, desonrava o sangue velho e expunha o novo em golfadas célebres.
Grupo de Dança Asas e Eixos. Não reconstruía. Propunha e expunha a dança nova.
Brasília sacudia e se sacudia para provocar novos sacudimentos, em si mesma e nas crias do seu ventre enorme, imenso! Uma dança de mãe e filhos que necessitavam recriar, a cada instante, o seu próprio sangue.
O Tempo, senhor sobre todos os deuses, caminhou impassível o seu caminho ceifeiro. (Infelizmente Chronos é muito mal compreendido na cultura ocidental) e os rebeldes de então, ficaram velhos e não geraram sangue novo capaz de transformar a sua transgressão em nova tradição.
No início dos anos 90 (a década final/fatal de cada século – prenúncio do processo de decadência do século) nasceu, despontou, rasgou da mãe o ventre uma companhia de dança de Brasília que levou o nome do número sagrado 108. Trupe 108 Cia de Dança que causou o último estupor em Brasília e em alguns lugares do mundo.
Com sólida formação técnica e detentores do virtuosismo do ballet clássico, os artistas envolvidos optaram por uma linguagem minimalista – também um virtuosismo, às avessas, mas virtuosismo – Um mínimo de gestual, mínimo de movimentos, mínimo de exibição da própria dança como expressão, mínimo de expressão teatral – máscara e voz -, mínimo de tempo de exibição de cada peça coreográfica, mínimo de cenografia, mínimo de vestuário, mínimo de intérpretes que, ao se mostrar, provocou o máximo de estupefação em todas as platéias – de artistas, de fazedores de arte, de consumidores de arte, de professores e ensinadores, de gente anônima, da crítica...
A Trupe apresentou um repertório de 5 trabalhos novos. Nada mais. Durou 2 anos e acabou. Perdeu-se, talvez, na sua própria estupefação?
15 anos depois da sua estréia a Trupe propõe uma nova questão. Não propõe uma exibição de trabalhos coreográficos, novos ou antigos. A Trupe propõe uma questão.
O que é a dança hoje, 15 anos depois da Trupe? Seria a morte da dança, na sua própria morte dois anos depois de ter nascida? Seria a morte do processo criativo, numa recíproca mal sucedida do estupor que não aciona, mas paralisa?
Teriam os criadores se deixado vencer pela conformidade da facilidade do velho, do antigo já conhecido? Da fácil repetição da mesmice?
E essa questão a Trupe não faz só para o externo a ela. Quer fazer principalmente para si mesma.
A morte da Trupe salvou-a da inexorabilidade de toda decadência?
Preferiu-se a morte à decadência?
Para tentar ter uma resposta a esta questão a Trupe optou por reunir os integrantes dela, os mesmos originais integrantes para um encontro quase nostálgico, mas com o fim determinado de reapresentar os mesmos trabalhos que apresentaram há 15 anos. Museu vivo dos anos 92/94 e, para dar-se um choque com a mesma corrente de eletricidade que produziu, naquele tempo, submeter-se a uma nova criação: arriscar-se a responder à questão acima, com o peito, a alma, o espírito e a vontade completamente abertos.
O que é HOJE a dança da Trupe (e de toda a comunidade) 15 anos depois, quando todos os integrantes têm 15 anos a mais; 15 anos a mais de as mais absolutamente diferentes experiências pessoais, culturais, sociais que cada um vivenciou separadamente, enquanto a Trupe repousava no seu leito de morte ou de descanso (quem sabe?!)?
O que representa um estado de estupor provocado pelo autochoque?

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