domingo, 10 de janeiro de 2010

De mim pra mim e para todos


Preciso desocupar este espaço que ocupo e devolvê-lo, urgente, à Terra. Mas antes devo prantear algumas coisas que não fui. Não fui por ter me proibido ou por não ter sabido como ser ou seja lá por que seja, não o fui.
Minha vida sempre foi o amor de Gustav von Ascenbach por Tadzio. Ao fundo, Mahler, impiedoso noadagietto.
Pouco mais do que isso. Algum brilho especial nos olhos verdes e na lucidez ultrajada e ultrajante.
Marco solitário em todas as vidas que passaram por mim, não soube marcar para que passassem por mim e ficassem! Sempre os perdi. Sempre fiquei só, a acenar uns acenos de adeus não convincentes. À beira da cerca de mim mesmo com porteiras sempre ultrapassadas.
Nunca soube fechar as porteiras para que os amores não saíssem para outras paradas e comigo continuassem a habitar o mesmo campo. Umas pradarias sonhadas. Apenas isso. Sonhadas.
Fui sonhos. Sonhos nos meus sonos e pesadelos nos sonos dos amores que fugiram sempre.
Amei. Amei muito mais do que devia ou podia e me resguardei de ser amado como merecia. Errei. Assustei-me sempre com a possibilidade de ser amado. Exorcizei todos os afetos que se aproximaram de mim e se ofereceram com mãos cálidas e dadivosas. Eu tinha sempre medo, me compreendem?
Assim como Von Ascenbach eu pintei os meus cabelos, os meus bigodes e maquiei o meu rosto do mais branco pancake e minhas faces com a mais rosada cor para alcançar o amor.
Sempre vesti o meu mais branco terno e portei o meu branco chapéu. Sempre pensei que assim, pudesse me apaixonar (e os barbeiros sempre me o disseram que sim...)
Sempre compus belas músicas e poemas de amor e tive uma história triste para contar e uma doença para curar...
Sempre fui a Veneza... e Tadzio nunca me disse, em nenhum tempo que sim, que eu podia me apaixonar.
Agora é finda a hora. O sol se põe e eu devo alugar uma barraca na praia fria da última espera.
O sirocco avança e a peste me aguarda. Mijos e mortos nas ruas. Mortes e decepções. Mijos e medos. Meus mortos semisepultos nas ruas. Mágoas de mim comigo mesmo. Mágoas e desapontamentos por ter sido sempre tão tardio nos meus impulsos e tão arrogante nas minhas tardanças...
Devo prantear o terno que agora sou e que não soube sê-lo quando me pediram ou esperaram que eu o fosse. Prantear o não ter sido.
Estar sendo sem nunca ter sido.
Desocupar o espaço terreno e voltar à divindade sem ter me dado as chances todas, sem ter sido o veículo perfeito para o prazer da Divindade!
Eis que é chegada a hora de recriar-me para o todo expressivo e receptivo e romper esse invólucro/barreira e dar-me ainda ao que na Terra está?
Ai que bom seria ainda essa chance derradeira!
Queria ter a ti e aos outros todos, novamente, alvo de suas mãos condutoras... talvez eu até conseguisse prometer que agora eu seria diferente!
Nostalgia de todas as músicas que ficaram, de todos os amores e dos últimos que ainda falam muito nos ouvidos do meu coração.
Mas isso vai passar na hora de entregar tudo à Terra.
Que eu entoe, então, canções!




Um comentário:

  1. Às vezes também me mato um pouco olhando para o abismo entre a Ana sonhada e a Ana que eu pude ser - mas nunca, confesso, com tanta beleza. Este texto, Gê, apesar de tão triste, é o cúmulo da poesia.
    Te amo. Beijo.

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