Eu traí. Eu menti. Eu enredei. Eu obstruí. Eu dissimulei. E confessei. - Confissão espontânea, jamais esperada, pois de crimes jamais sabidos.
Ando, agora, no banco dos acusados, em julgamento solene. Naturalíssimo, conforme a Lei.
À esquerda, minha defesa, a Honestidade. À frente, o Juiz, sempiterno impoluto, sob a mão de Deus zeloso e criador, que vinga a iniquidade.
À direita, o Promotor. Justo à minha frente, dedo em riste, a Vítima.
Lei humana, Lei divina: traí, imediato, devo sofrer julgamento – condenação ou indulto.
O Juiz, impoluto e religioso, sob a égide de deuses, empunha na mão esquerda uma cruz e na direita, a máscara e é, ao mesmo tempo, minha vítima e o promotor.
Sei que me perguntarão o que é a máscara. Devo recordar-lhes, Senhores, que o acusado só pode falar se autorizado. Sugiro que perguntem a ele, o Juiz, o que significa essa, dele, máscara... não me cabe explicá-la. Eu não a tenho, Senhores. Somente a vejo.
Olho-me e olho rogativo à minha defesa. A honestidade da confissão espontânea (ao contrário do meu atual Juiz, outrora criminoso contra mim, que só confessou sob tortura) é, em si, ato de coragem ou ato de subversão?.
Rogo a mim, aos meus deuses e ao Tribunal a sublimação do ato viril e corajoso da confissão e auto-exposição ao julgamento e, caso condenado, à execração pública. Não encontro eco.
Alguém no tribunal me diz, enfaticamente:
- Jamais confessasse, senil! Entortasse, distorcesse, escondesse, ocultasse, mas jamais confessasse!. O não provado confirma in dubio, pro reo!
Eu me pergunto, de chofre, de dentro dos meus intestinos, sob essa dor da obrigação de esconder a culpa, para não ser declarado culpado! Se eu não houvesse confessado, ainda seria fiel depositário de confiança, mesmo não sendo, lato sensu, confiável?
Raios me atravessam a alma libertária e indomesticável, que grita fundo, no silêncio obrigatório, interpelando a todos os juízes universais do tempo e da história, dos céus e dos infernos que, se não reconhecido o crime, ele é, automaticamente, inexistente? Que os juízes – mesmo quando vítimas do crime – e não cônscios dos desvios do criminoso, continuarão acreditando, defendendo-o e ainda acusando de caluniadores os que apontam na direção desse criminoso – como fez o meu próprio juiz há bem pouco tempo?
Estão querendo afirmar à minha alma que, caso eu não tivesse confessado espontaneamente minhas traições ao traído, ainda hoje, esse traído defenderia veementemente a minha honestidade, sendo que, de fato, ela não existiu até o momento da confissão da minha desonestidade?
Querem que eu enlouqueça do modo mais cruel?! A loucura que foge da realidade?
Essa loucura não me pertence, Senhores! Eu sou a loucura da lucidez – mesmo aquela que crava fundo no meu peito e o rasga, ensandecida, mas não a outra. A essa que me propõem, eu prefiro o desmonte.
É quando os demônios da sapiência se aproximam, sorrateiros, de mim e me sopram perguntas ameaçadoras:
Teria o Juiz a coragem de confessar os seus crimes, semelhante ao que procedeu o acusado? Ou insistiria o impoluto e religioso Juiz dizendo-se jamais ter-se valido de crimes para a sua existência ordinária?
Entre os demônios sorrateiros, eis que vem Lúcifer, no mais vigoroso brilho que pode ter e me diz, sereno e vingativo:
- O juiz, qualquer juiz, só poderá exercer um julgamento se, alhures e algures tiver, de alguma forma, vivenciado experiência idêntica àquela a qual está julgando, na pele de sujeito do julgamento. Caso não e, ainda assim, se atreva, não é juiz. É mero sentenciador.
Ave, Lúcifer!