terça-feira, 23 de março de 2010

O Glamour e o Pão-com-ovo

Ontem, um ser especial me disse de forma brilhante e sábia: “... assim como o discípulo afoito vê um mestre em qualquer pessoa de destaque público, acho que o oposto complementar que alimenta isso, também deve acontecer, ou seja, o "mestre" pode ver um grande discípulo em alguém que não dá nem meio discípulo...”

Que grande sabedoria e ponderação, Senhores. Simples como água cristalina e firme como cristal de rocha.

E onde isso tem início? Onde se estabelece essa incapacidade de discernimento, de acerto, de ponderação que poderia evitar tantos e tão malfadados casos de desvios e desacertos? No Poder, Senhores!

O Poder é a faculdade de impor obediência. Autoridade. Mando. Império. Soberania. Posse. Domínio. Atribuição. Força moral. Virtude. Influência.

A busca pelo poder é natureza essencial do ser humano.

Não se pode envergonhar ou recear ter e exercer o poder. É parte da ordem e das estruturas sociais e culturais.

A exacerbação do poder ou a caça faminta dele é que o tornam perigoso e assassino.

Peço licença para falar sobre o poder exercido nas áreas de meu interesse e atuação: os sistemas mágicos, os sistemas religiosos e suas decorrências.

No nosso caso, no trabalho com elementais, fala-se muito sobre o glamour das fadas... um eufemismo romântico e condescendente com o verdadeiro glamour – glamour do poder!

Criaturas que sonham, deliram, alucinam com seres e deuses e panteões e armas e mistérios e se afirmam sacerdotes e sacerdotisas, iniciados por ou autoiniciados por também e, do nada, com um athame na mão esquerda, um caldeirão de ferro, um saco preto de tecido barato e um indefectível pentagrama, criam uma “tradição”...

No entender pleno do vocábulo, tradição é a comunicação ou transmissão de doutrinas, ritos, costumes, feita de pais para filhos no decorrer dos tempos ao sucederem-se as gerações. É Memória, recordação, símbolo.

Mas aqui, não! Tradições são criadas (pensem!) após o sonho ou pesadelo de alguém e nomeiam-se com títulos pomposos: Tradição do Dragão Encurralado... Tradição das Diânicas Definitivas... Tradição dos Povos Wanen da América Central... ufa! E todas com suas siglas e seus símbolos mágicos.

Depois que é criada a “tradição” – recém-nata - escrevem-se textos, livros das sombras, grimórios, receitas de feitiços e manual de rituais, sabe-se lá saídos de onde ou de quem copiados e dá-se o nome a esse conjunto ordinário de “mistérios da tradição”! Nada mais precisa ser feito! Resta apenas esperar por todos os que andam à cata de qualquer coisa que os tirem do anonimato e lhes dêem alguma confiança e, quiçá, projeção. Pronto. A faca e o queijo!

Desse encontro de um alucinado, com desejo premente de adulação e reverência e dos alucinados por adular e reverenciar, a coisa toma corpo. Infla-se como uma bolha, inflando os egos de um e de outro. Do líder alucinado e dos acólitos liderados.

E não me venham esses bruxos brandindo os seus BOS (book of shadows, para os que não sabem) - e eu me irrito aqui, mais uma vez perguntando a esses delirantes, por que não o simples e bem português Livro de Sombras? Será que, no seu entendimento, a coisa fica realmente mais glamorosa se expressada em inglês? Lembra-me os subúrbios pobres de todas as cidades, onde placas pobres nomeiam restaurantes e bares sujos, e se pode ler, comumente Drink’s Bar, ou Internet’s Bar e coisas do gênero... -

Não venham brandindo os seus livrecos encapados com papel camurça preta e com a triluna desenhada com tinta relevo prateada, porque não me ameaçam nada. Já cumpri a minha cota de imbecilidade acompanhando um cordão de delirantes e seus evangelhos por um bom tempo! Não me cabe mais... aliás, os líderes do meu bando jactavam-se, com os miúdos e franzinos peitos, que “iniciavam e desiniciavam”. Quem me dera a ventura de ser desiniciado!

Pois bem, passado esse fervor verborrágico e emocionado meu, tudo isso se resume na comparação entre e o glamour e o pão com ovo. Cada uma das partes não vê no outro o pão com ovo que ele é. Cada um escolhe o glamour que quer ver no outro. O Mestre vê no discípulo muito mais do que ele realmente é. Valoriza-o e destaca-o como propagador de si mesmo, para a posteridade, sem perceber, movido pela sua própria falta de sustância que o outro é apenas um reflexo dessa mesma ausência de substância. E vice-versa.

E, pelo que parece, está todo mundo nessa... dois anos de elevada admiração um pelo outro e, logo após isso, a coisa, em si, começa a se faltar.

Como o líder não pode dispensar os liderados porque a sua vida carece do delírio e da devoção deles, esse líder parte para a mais automática das saídas: o exercício do poder de disposição sobre os liderados. Eu sou o Mestre e aqui mando eu.

O liderado, por sua vez, que já percebeu a pobreza essencial desse mestre, arma-se do poder que o mestre lhe forneceu durante os dois anos e o que acontece?

Para saber, é só freqüentar qualquer uma – isso mesmo, qualquer uma das “tradições” de bruxaria... aí, qualquer um aprende a gritar - Deusa nos acuda!

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