sexta-feira, 19 de março de 2010

Othala ou Gebo?

Estávamos ele e eu em um mosteiro budista, embora não fôssemos monges. Éramos muito felizes e divertíamos com a alegria própria dos que são felizes e têm pouco compromisso com a seriedade das coisas.

Uma sala ampla, com grandes janelas que se estendiam do alto do teto até muito próximo do chão, onde podíamos passar e verificar a paisagem externa.

Eu estranhava o pátio que, pareceu-me, foi construído sobre as escarpas montanhosas do Himalaia e transformadas em planície, a custo de cimento. Era nítido o grande lajeado que fora instalado, sem muitos requintes, sobre o que antes eram abismos entre os topos e as bases das grandes montanhas.

Eu já estivera lá antes! Sei que sim... Ou não? Talvez estivera em outro, parecido... Aquele moço budista estivera junto comigo, à época! Embora fosse quase o mesmo apenas sem os precipícios, esta nova paisagem ficava desconfortável. Artificial!

Lamentei a perda da beleza natural antiga... amedontradora, perigosa, mas real e fascinante por isso mesmo.

Mas de que importa isso se a alegria de estarmos juntos em um mahalila tão divertido era tão premente?

Longe, após o aterrado artificial, o que sobrou das montanhas era circundado por uma espécie de muro que, no desenho da paisagem, como uma pintura italiana do século XIX, perdia os contornos, num sfumato estranho. Algo como se o pintor tivesse desistido de completar e borrara-os com os dedos.

No alto e por detrás dos cimos do muro sfumato passavam seres com forma humana e sem detalhes. Sombras indivisíveis. Os seres passavam com atenção aguda voltada para nós dois.

No pátio, uma construção sem paredes. Pilares ou troncos suportavam um grande teto, enfeitada com bandeirolas, fitas, luzinhas... e parece-me, havia gente cantando e dançando. À esquerda do nosso olhar.

Também esse templo era, para mim, algo entre o muito conhecido e o completo desconhecido. Eu já estivera aqui antes!

Ele me olhava, um traço interrogativo, afirmando crer que sim, que eu pudesse ter estado aqui antes, mas que isso não tinha muita importância: que mais gostoso seria aproveitar o aqui e agora. Éramos leves e sem mágoas ou tristezas.

Apenas a minha leve dúvida de ter ou não ter estado aqui...

Num instante outro, ele e eu estávamos juntos, eu abraçado por ele, reclinados em alguma coisa, quando me disse, no seu jeito de falar em elipses:

- Sim, sabemos que sim. Que gostamos de estar juntos e que podemos ter algo a mais que isso... (aqui, nas suas elipses, você subentendia que podíamos namorar e fazer sexo); mas que seja enquanto estivermos juntos (nessa outra elipse, o sentido é que enquanto estivéssemos geograficamente juntos, porque morávamos em lugares diferentes).

Continuando me abraçando, deixou claro que o compromisso poderia ser só esse e que, quando não fosse essa a situação, cada um teria a liberdade de cada qual para seguir o que mais lhe aprouvesse, da forma e com quem aprouvesse.

Lembro-me que fiquei radiante porque, aqui e agora, importava que seríamos mais felizes do que já ocorria.

Nisso, o telefone celular dele chamou. Atendeu e disse oi, Teinho! Sim, tudo bem. Desligou e, à sua maneira típica, esticou o tronco e a perna direita, para que pudesse guardar o aparelho telefônico no bolso da calça jeans azul.

Começamos a nos beijar e a nos excitar e eu, julgando-me mestre da sexualidade liberada, no propósito de propiciar a ele experiências sexuais mais novas e libertinas – havia nisso uma missão de facultar a ele olhares menos difíceis sobre as práticas na cama – saí em busca de mais parceiros para a experiência.

Estávamos, os dois, subidamente excitados e ansiávamos pelo nosso gozo de almas e corpos irmãos.

Após alguns passos meus em busca de complemento para esse gozo ansiado, viro-me e o vejo, com três outros moços naquela cama... e mais, transparecia ser o mais libertino... a foto que me ficou foi ele nu, ajoelhado beijando e lambendo a perna de um dos convivas, que deitado, tinha essa perna levantada e sustida pelos braços dele, em volteios e volúpias da sua cabeça e língua, fremindo uns prazeres absurdamente livres para quem sempre fora tão contido e de recato atroz.

Dor e indignação no meu peito! Absurda vontade de gritar o nó que me estrangulava a garganta. Dor, medo, angústia, humilhação, despejo, rejeição e completo desamparo, enquanto ele se esticava naquela enorme volúpia e não trazia a mais pequena, a mais miúda consideração para comigo. Não despejava nenhum sentimento em minha direção. Não! Não havia propósito em provocar em mim qualquer reação. Apenas o seu envolvimento consigo mesmo e seus prazeres...

Mudo fiquei. Mudo permaneci, engolindo o grito que me estrangulava a garganta. Consciência de que nada mais era possível fazer além de engolir o meu grito e com ele permanecer mudo. Contido. E a minha dor se desfazendo em líquidos e descendo da garganta por todos os vasos e artérias e preenchendo todo o meu ser com um medo cor de chumbo.

Ali, parado, chumbado naquele chão, cena seguinte, os três rapazes, vestidos a negro, um deles com camisa de mangas curtas e colarinho, cabelos negros, rosto redondo, olhos muito negros presos numa córnea um pouco amarelada, pele morena e cabelos penteados como ouriço desalinhado, olhava-me intensamente, com a cara de quem pôde, sim, ter feito o que ousara ter feito, com um misto de tentativa de me submeter a ele e um sutil laivo de prazer, pelo que a ousadia e o direito dele em mim provocaram de dor e angústia. Era o Teinho.

- Eu já te contei, disse você. Há mais de um ano sou apaixonado pelo Teinho e ele me recusa. Sou completamente apaixonado por ele!

Numa honestidade absurda e cruel... sem elipses, sem anacolutos e nenhuma hipérbole!

Nada mais fiz.

2 comentários:

  1. Vc consegui nesse texto ser simplesmente lírico. Lindo! Parabéns.

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  2. Obrigado, minha amiga! Ter um elogio seu, conhecedora e apreciadora de literatura, me faz mais feliz ainda!
    foi um sonho que tive... nada mais mágico e real do que esse sonho foi!

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